O projeto abre caminhos para a subjetividade criadora da artista que chega se autoafirmando e invocando a sua ancestralidade
“Eu me senti encorajada a gravar esse trabalho porque estava muito animada com a possibilidade de me reconectar, de criar livremente, de trabalhar com autonomia, de descobrir novos sons, com a importância da interseccionalidade da música preta contemporânea, ou seja, uma criação de imaginários onde eu me sentisse segura para cantar, produzir o que eu quisesse e sentisse, trazer referências pretas e o prazer de trabalhar coletivamente para essa obra nascer”. Produzido por ela e Ricelly Lopez, conta com as participações de Lídia Dallet, Realleza, Ana Bea e Débora Valente: “amigas, negras, cantoras, produtoras, artistas independentes e pessoas com quem tive boas trocas afetivas”. Clique aqui para conferir
As misturas de R&B, soul, lofi e blues, marcas do EP, dão no que Haynna chama de soulfrência – sofrência estilizada no universo da música negra jazzística. “Esses gêneros são pretos, são ancestrais, são nossa marca. Então, brancos, não se esqueçam disso. Digo isso referenciando o que Baco Exu do Blues canta: “Tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco, foi aceito eu vou chamar de blues. É isso, entenda, Jesus é blues”.
(Foto por Thaís Mallon)
Somam no time realizador, Ricelly Lopes (guitarra e synth), Dani da Silva (teclado), Rhayane Mayara (beatmaker), Savina Alves (contrabaixo), Jhonata Pikeno (bateria), Lucas Ramalho (percussão), Lídia Dallet (vocais), Felipe Phyre (masterização), Petbob e Tap Sounds (mixagem).
O single que dá nome ao disco – e aqui ganha destaque – tem coautoria da rapper brasiliense Lídia Dallet: “Uma grande artista, uma divindade pra mim, criadora do estilo musical Ceilândia Latin Jazz, ela trouxe a poesia de uma forma bem envolvente, energética, amorosa, afetuosa, a cereja do bolo que essa black music contemporânea precisava”. A música foi composta para a esposa de Haynna, Aisla. “Ela fala do nosso encontro, da potência que é duas mulheres negras juntas, nosso amor, a saudade que sinto dela quando ela não está comigo”, comenta. O visualizer que foi dirigido por Filipe Duque e gravado na Sala 15. Os azulejos da locação contribuem para figurar um espaço idílico onde Haynna é uma sereia à espera de seu amor.
“O EP traz a porta do peito aberta em um período pandêmico, de muitas perdas, muitos recomeços, sentimento de reapropriação, de resistir artisticamente a um momento político difícil do país. No meio disso tudo eu quis falar de arte, quis me redescobrir, me desafiar. Então, do começo ao fim, é sobre sentir, refletir, deixar ir, amar, continuar artista mesmo no meio desse caos”.
“Porta do Meu Peito” é, afinal, uma experiência feita para celebrar brasilidades e o afrofuturismo. As influências vão de Tim Maia, Cassiano, Marcia Maria, Elza Soares e Sandra de Sá até Liniker, Tuyo, Youn, Gavi, Ellen Oléria, Xênia, Luedji Luna, Urias, Jadsa, Tássia Reis, Tulipa Ruiz e muito mais.
FAIXA A FAIXA
A faixa Pensando em Você terá um clipe, além do visualizer, um R&B super lindo.
Ele fala do amor entre mulheres, mas também pode ser uma mensagem para si
mesmo, a letra tem essa dualidade. Fala da diferença de personalidades no
relacionamento amoroso, de manter de pé o que está vivo, leve e gigante. Todos
nós temos esses embates nas nossas relações, na relação afrocentrada não é
diferente – temos nosso amor gigante, mas temos que respeitar e lidar com a
diferença das nossas personalidades, o respeito com o outro para manter a chama
do amor viva.
Como participação, chamei Realleza, uma grande artista e liderança, uma voz
única, envolvente e que me deixou muito feliz em topar de somar no meu primeiro
trabalho. Gravamos a música e o clipe juntas e foi muito grandioso estar com ela,
celebrar e contracenar nesta produção.
A ideia do clipe era ser leve, romântico e belo. De ideia principal queríamos um lar,
uma casa aconchegante, um bom vinho, uma boa companhia para brindar a vida.
Eu fiquei muito feliz com as trocas e o resultado.
A gente não é só dor ou resistência. A gente, mulher negra, quer falar de amor
também. A gente merece ser feliz, essa era a sensação que queríamos passar
nessa música e nesse clipe.
Pra Saturno é uma música reflexiva, é um lofi, em que trago questionamentos
relacionados a momentos de solitude. Ela fala de pausas, recomeços, paciência
para fazer as coisas, fala sobre uma quebra de ciclo, sobre deixar ir. Ela traz a
reflexão que é melhor estar sozinha do que com pessoas que te desmotivam. Digo
isso porque moro em Brasília há dez anos, vim pra cá com a cara e a coragem e às
vezes bate uma saudade de casa muito grande, às vezes quero um amigo sincero
com quem eu possa ser eu mesma, mas em determinados momentos a melhor
companhia é a nossa mesma.
Como feat, chamei a Ana Bea, uma grande artista, cantora, compositora e
psicóloga, apaixonada por tarot. Uma amiga que já me viu de um ângulo único,
quando ela jogou tarot para mim, vi além, me abri. A primeira carta foi o sol, que
apresentava algo grande e luminoso, me desfiz da pequenez que estava sentindo
na época e retomei a minha vida com toda coragem, me senti grande como Saturno,
que, mesmo sendo a planeta mais distante, ainda assim, é gigante para ser
observado a olho nu da Terra.
Peculiar é a mais densa, trago esse blues, com mensagem intensa, para quebrar
ciclos abusivos, preconceituosos. Quando a gente precisa continuar, mesmo
acabada por dentro, quando a gente toma a decisão de não ser mais silenciada pelo
racismo, pelas lgbtfobias, pelos preconceitos que já me fizeram paralisar, duvidar
de mim mesma: é uma decisão de seguir plena nos meus propósitos, de não aceitar
pouco ou menos do que eu mereço.
Ela é um recado pra branquitude que ama nossa arte, mas adora nos odiar; amam
nossa arte, mas não nos respeitam como negritude; se apropriam de forma
desrespeitosa, peculiar, fortalecendo um pacto narcísico entre eles. Essa música
sou eu de costas pra quem se nega a fazer reparação em 2022.
Canto Preto é um presente que me veio, uma música de coragem e também
reflexão. Eu estava pensativa na dependência que temos das redes sociais, a
cobrança que é feita para que se tenha uma rotina insana, como o artista
independente às vezes fica adoecido por ter que criar um conteúdo, fazer papel de
feliz nas redes, quando estamos esgotados.
Trago a coragem das minhas ancestrais neste canto, a coragem da minha mãe em
ter me colocado no mundo, mesmo sendo mãe solo, trago a certeza que meu canto
preto e o canto de milhares de artistas negros serão ecoados, respeitados. A chama
da arte acesa nos momentos de caos. Quando falo que “você vai me ouvir cantar
onde você for”, me refiro às vozes negras deste nosso Brasil, minha voz ecoando
através do mesmo propósito que temos.
SOBRE HAYNNA
Haynna é mulher preta, nordestina, periférica, cantora, compositora, intérprete e produtora cultural piauiense. Radicada em Samambaia, Região Administrativa de Brasília, Distrito Federal (DF), é vocalista e linha de frente da banda Haynna e Os Verdes. Em 2018, lançou com o grupo o disco indicado ao Prêmio Profissionais da Música 2019 nas categorias “Melhor Intérprete de Rock” e “Melhor Intérprete de Blues”, finalista nesta última. É idealizadora do Festival Haynna e Os Verdes e destaque na cena musical do DF por ser uma agente cultural que presta relevante contribuição ao desenvolvimento artístico e cultural e à projeção de artistas negres e LGBTQIAP+, à ocupação dos espaços públicos, à descentralização da cultura, à arte independente e suas constantes transformações. Por essas contribuições, em 2018 recebeu o Prêmio Equidade de Gêneros na Cultura. Em 2020, foi premiada com o Cultura Brasília 60 e, em 2021, com o Prêmio LGBTQIAP+.
A artista atualmente dedica-se ao lançamento do seu primeiro EP “Porta do Meu Peito”, marcando, assim, o seu projeto solo.